terça-feira, 20 de novembro de 2007

Nº5

Percebo pelo texto Nº4 e por este que inicio a escrever que gosto de definições. Neste texto quero falar um pouco sobre a palavra poder. Não porque imagino que alguém desconheça seu significado, mas sim porque acredito que muitos não gostam dele e, por isto, acabam o substituindo.

Eu posso, tu podes. O poder está ligado à capacidade. Eu tenho boa saúde e posso ir andando até a padaria, sou capaz de fazê-lo. Um homem forte pode, se assim o quiser, matar uma pessoa mais fraca com as mãos. Digo e reafirmo, tanto pode matar que todo dia alguém morre nesta situação.

Note que não há diferença entre eu “poder” ir à padaria e um homem “poder” matar outro (só não digo que eu poderia matar a outro porque me falta o estômago para tal). Ambos os casos se tratam de uma mera análise das capacidades de cada um.

Muitos diriam que não se pode matar e, por conseqüência, estariam errados. Pode-se matar, roubar, dançar, pular. A questão que estas pessoas no fundo defendem é sobre se deve ou não permitir determinadas ações, ou seja, quais atos deveriam ser punidos. A maior prova disso é que existem assassinos e bandidos e que quando estes são identificados eles são punidos – embora nem sempre.

Mas então por que usar a palavra “pode” ao invés de "deve"? Por que cometer um erro tão banal? E a resposta pode vir em forma de pergunta: Quem disse que é um erro?

Primeiro tenhamos claro que dever é uma questão normativa, moral. Dizer que uma pessoa deve fazer algo equivale a falar que esta pessoa tem uma obrigação moral de fazê-la. Ademais, subentende-se que esta pessoa pode fazer o que lhe é cobrado, que ela é capaz de executar esta ação.

Já a idéia de poder, de potência, é totalmente amoral. Ela serve apenas para delimitar o que esta no campo do possível. É-me impossível voar balançando os braços ou atravessar uma parede. Então eu afirmo que eu não posso fazer tais coisas simplesmente devido a uma impossibilidade física, não porque considero errado.

Nenhuma destas definições trás novidade. Todavia, o detalhe está quando se busca fazer com que se acredito que o "eu não devo" seja igual ao "eu não posso". Vejamos um exemplo.

Imaginemos o caso das mulheres mulçumanas que cobrem todo o corpo de preto. Elas se vestem assim por uma imposição da religião, elas acreditam que não podem se vestir de outro modo. Note como soa natural dizer que elas não podem se vestir de outro modo.

Como ela acredita que ela não pode se vestir de outro modo ela não questiona, ela não escolhe se vai ou não se vestir deste modo. Se ela só pode se vestir de preto ela não tem escolha: a gente só pode fazer o que é possível (chega a ser extremamente redundante). De certo modo ela foi mutilada. Cortaram dela a capacidade de se vestir de outros modos, de explorar a sua imagem.¹

Ou seja, agora saindo do exemplo, o que acontece é que a troca entre os conceitos de dever e poder acaba tolhendo nossa capacidade de escolher. De fato, ao observar o nosso dia a dia, por diversas vezes nós dizemos e ouvimos a palavra poder no sentido de dever, sendo que no caso a mensagem deixa de ser “existe uma obrigação moral de proceder assim” e se transforma em “a única opção é proceder assim”.

E porque a escolha some? Porque aceitar uma forma única de proceder equivale a aceitar um código moral sem que nós conheçamos sua origem e suas conseqüências. Muitos dirão que isto importante para manter a paz, sendo que neste caso as pessoas não deixam de matar porque assim elas escolheram e sim porque lhes foi ensinado que existe um muro invisível que as impossibilita.

Óbvio que não podemos levar esta idéia ao extremo de achar que ela sempre se torna em uma imposição instransponível. Uma pessoa que acha que não pode roubar pode descobrir que ela de fato o pode em caso de extrema necessidade. Mas mesmo neste caso a pessoa não fez uma escolha, ela foi levada a agir de modo puramente instintivo para garantir sua sobrevivência.

A palavra poder consiste no verdadeiro destruidor da moral como um princípio universal. Ela sempre pode ser usada para testar as conseqüências de um preceito e mostrar se ele é útil ou não. E por conta disto ele é considerado tão perigoso e combatido: chama-se dever de poder para que as pessoas se esqueçam de tudo o que elas realmente podem fazer.

¹ se eu fosse CET agora com esta história de quem multa mais ganha mais eu colocaria uma cadeira de praia e um guarda-sol em frente alguma igreja bem movimentada, de preferência que ficasse em uma esquina. Ai, quando passasse um motorista e ele fizesse o sinal de cruz com alguma das mãos era só usar o art.54 e garantir mais uma multa.

“Art. 54. Os condutores de motocicletas, motonetas e ciclomotores só poderão circular nas vias:

II - segurando o guidom com as duas mãos;”

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